• “A alma não se rende ao desespero sem haver esgotado todas as ilusões”
  • # Vigésimo Quarto

    quinta-feira
                                                                      
                    Amanhã é o dia que tanto esperei. O dia pelo qual a anos, nessa minha realidade confusa venho buscando. É amanhã também que talvez a minha vida mude para sempre. Ou que eu permacerei nessa rotina ultrapassada.
                    Desde criança ouvia dizer que eu era mesmo que nem meu pai. Se meu pai, tivesse sido um homem bom. Trabalhador. Pelo menos tivesse sido um bom pai, nem que fosse somente pros meus irmãos, nem que fosse uma figura representativa pra minha mãe... Pois isso já bastaria para consequentemente termos tido uma boa mãe. Mas não... todas as lembranças que trago dele pretendo esquecê-las.
                    A coisa que eu mais fico sentida nesse mundo, é se disserem que sou como meu pai. Logo eu, pai e mãe de meus irmãos, todos menores. O porto seguro de minha mãe. A quase boa aluna, boa filha, boa irmã, boa mulher e dona de casa. Mas apenas quase. Pois vinham a me atormentar me mostrando que tudo que eu fazia era falho, que tudo tinha um erro. Vinham a me deixar um lixo ou um quase lixo pois até ser lixo é demais para alguém comparada a um alcólatra, vagabundo, estuprador de criancinha, que todas as manhãs devia ir pra delegacia por infringir Maria da Penha, maconheiro, infantil da cara lisa, mas a pura cocaína personificada em um ser.
                   Sou uma cocaína personificada. Pelo menos isso, não posso negar que puxei de meu pai. Eu me sinto grande. Inchada de ego por dentro. Uma pessoa importante. Mesmo não sendo nada. Como por exemplo me senti quando tirei nota máxima em matemática, e com meus próprios esforços. Não, não foi sorte. E eu não colei de ninguém, não daquela vez. Eu havia colocado na cabeça que aprenderia matemática  e fui atrás. Me esforcei muito resolvendo as questões daquele livro mofado que eu roubei da biblioteca da prefeitura. E quando vi a nota percebi que eu não estava destinada, a ser aquela fracassada a qual todos tacharam. Vi que eu podia alcançar qualquer coisa, nem que fosse a lua com uma esticadinha.
                    E foi a três anos exatamente que vim parar aqui... porque eu furei os olhos de meu pai. Furei, furei, furei. Para que ele não pudesse ver a vitória de sua filha. Nem nunca mais admirar um nascer do dia, se é que ele fazia isso. Mas eu sei que hoje ele sente falta de não saber o que é isso . E se eu o visse, pode ter certeza que eu vou ter o maior prazer de descrever para ele como é, não só isso mas muitas outras coisas, só pra ver o desespero em seu rosto. A derrota. A fraqueza...
                   Você deve estar achando que eu sou uma pessoa má. Talvez eu seja mesmo, mas só com meu pai. E você tem que concordar que pra um alcólatra, que bate na mulher, estuprador de criancinha e traumatizador, de sua única filha que talvez saísse daquele maldito lar, e fosse alguém na vida. Mas ele preferiu dizer que eu era dez mil vezes mais útil 'Servindo de brinquedo pros gringo como sempre do que chegando em casa com um pedaço de papel riscado com uma nota idiota. E que dez em, matemática não ia trazer comida pra casa''. E eu uma menina de 14 anos é que tinha que botar comida na mesa? Porque ele não virava homem? Eu não me arrependo do que eu fiz , me arrependo do que não fiz , pois eu devia ter-lhe cortado a língua também, para que jamais ele repetisse uma atrocidade dessas outra vez.
                   Eu preciso ir. Amanhã é o grande dia. O dia que vou ser julgada por todos os meus crimes. Crimes de ter sido uma 'quase' em tudo na vida, porque eu sempre soube que podia ser melhor. Crime de  ter estudado ao invés de ter colocado comida na mesa pros meus irmãos comerem. Crime de ter permanecido com um sorriso doentio, mesmo quando me pegaram de prego na mão, com meu pai desesperado cheio de sangue no chão. E amanhã vou saber se já bastam estes três anos. Tenho certeza que Fernanda Young, sente orgulho de mim... entenderam? E quando eu sair daqui, eu vou cuidar da minha família e da minha filha.
                  Filha fruto de um programa arrumado por meu pai, meses antes de eu furá-lo. Minha barriga crescia e eu não sabia que havia uma esperança crescendo ali. Nasceu na febem, mamãe a levou e espero que a esteja tratando-a muito bem. E quando eu sair daqui vou dar um futuro ao qual nunca tive para ela, a Glória. Mas realmente tenho que ir. Vencer mais esta batalha na minha vida e mostrar pro mundo que eu sou maior do que ele pode aguentar.
                 Faleceu nesta última terça-feira, a ilustríssima Maria Joana. Escritora de livros infantis dedicados a sua filha Glória, atual diplomata do RJ. Maria Joana, nasceu em uma favela, cresceu subordinada a um pai maníaco, foi presa aos 14 anos, por injustiça da sociedade de reconhecer os porquês, nesse mesmo ano deu luz a glória. Ao sair da febem lutou pelos seus sonhos, voltou a estudar, trabalhou, educou os irmãos e sua filha. Aos 22 anos casou-se com Pedro Henrique, professor universitário de letras ao qual teve gêmeas e já é falecido. Maria Joana foi digna de todos os prêmios, uma mulher incrível, vivida e determinada. Que teve seus sonhos realizados e barreiras superadas e realmente como ela sempre assinou em seus livros... uma cocaína personificada.